A fina dama

A fina dama
Fernanda Takai - a fina dama da mpb

quarta-feira, 23 de março de 2011

Vida modigliani

Marginalidade, arte, desastre, dramaticidade
De tudo que se foi
Foi a parte mais dolorida, a arte
De tudo o que restou, a marginalidade
Na tela inquieta, a dramaticidade
Quase ninguém viu
Quase ninguém o aplaudiu
Quase ninguém soube se apaixonar
Mas havia alguém que viu
Houve alguém que se aproximou
Alguém que teve sua alma lida
Lida e pintada num quadro
Não foi apenas uma aventura
Aquilo foi arte transcendente
Sem nexo
Sem muitos sentidos
E foi desastre num final infeliz
Assim, na marginalidade
Embora fosse bem mais nobre
Bem mais apaixonado pela vida

segunda-feira, 7 de março de 2011

CONVERSA CIVILIZADA COM SEU APOLINÁRIO

            Um dia desses estava na fila do banco e na minha frente havia um senhor de certa idade que dizia ser de família austríaca, que havia participado da Segunda Guerra engrossando as fileiras do exército nazista, embora ele jurasse ser totalmente contra as ideias racistas que sustentava o füher.
            No desenrolar da conversa, que não foi tão longa, ele derramou quase toda a sua vida, menos sua idade e seu sobrenome. Além de soldado na Segunda Guerra, o senhor Apolinário disse ter sido técnico da seleção russa de futebol, ter se casado a primeira vez com uma japonesa e comprado várias peças de tecidos de um turco que possuía um pequeno comércio no centro de Recife. Além disso, já foi crente no islamismo, depois virou ateu e agora simpatiza com uma filosofia indiana, que prega aos seus seguidores a purificação do Rio Ganges, assim poderiam entrar nele, se purificarem de seus pecados e alcançarem uma vida eterna em algum lugar que ele ainda não sabia descrever ao certo.
            Nessa altura da conversa, seu Apolinário se exaltou e falou num tom áspero com o dedo indicador erguido:
         -Esse é que é lugar, não um lugar tão atrasado como essa cidade que moramos, e melhor que isso: será uma eternidade! Naquele instante a eternidade parecia ter chegado naquela fila, seu Apolinário estava com sua face já avermelhada, e completou:
        -Já andei em muitos lugares nesse mundo, falo três idiomas e estou quase dominando outro de um país árabe... acho que o Afeganistão. Já tive mais de cem mulheres, já fui deputado, ministro e quase prefeito da cidade de Passo Bento nas Alagoas, e lhe digo: medimos o grau de civilidade de um povo pela quantidade de lombadas que existem nas ruas! Aqui tem um a cada cinquenta metros.
Fiquei sem entender naquele momento a relação que seu Apolinário fazia das lombadas com o desenvolvimento humano de uma cidade. Talvez lombadas minimizem selvagerias humanas do tipo atropelamentos, colisões de automóveis de motoristas pilotando em alta velocidade... Nesse instante de segundos dos meus pensamentos, chegou à vez do seu Apolinário ser atendido pelo caixa do banco.
Continuei na fila, um tanto confuso tentando interpretar o pensamento do seu Apolinário em relação às lombadas e a civilização. Imaginei um monte de hipóteses, cocei a cabeça, me formigaram os pés, me angustiei sem saber ao certo porque estava tão angustiado; poderia esquecer aquela conversa, poderia não ter dado importância alguma, mas na minha cidade existem várias lombadas pelas quais eu passo quase todos os dias para ir ao mercado, para deixar as crianças na escola e quando estou apressado pro trabalho. Quando minha esposa foi ganhar neném quase consegui fazer o carro voar e ela dar a luz ali mesmo, pois passei por uma dessas lombadas sem me dar conta. Agora seu Apolinário parecia me fazer entender ou me confundir ainda mais, pois não me lembro de ter tentado interpretar as lombadas, mas apenas tê-las considerado como necessárias. Necessárias pra que?! Para um processo civilizatório? Ou apenas para fundamentar os pensamentos de pessoas como seu Apolinário!